Arte: Rafael Werkema/CFESS
A defesa dos direitos de pessoas trans é uma bandeira histórica do Serviço Social no Brasil. Recentemente, em setembro de 2024, o CFESS e o CRESS-MG promoveram o “Seminário Nacional Serviço Social, Feminismos e Diversidade Trans” em Belo Horizonte (MG). No evento, os debates tiveram como tema o acesso a direitos pela população trans e questões relativas ao exercício profissional de assistentes sociais. Para debater o assunto e reverberar reflexões sobre as opressões e violências vivenciadas pelas pessoas trans, o CFESS destaca o Dia Internacional da Memória Transgênero, celebrado em 20 de novembro.
Segundo dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids/2020). mais de 90% da população trans já sofreu discriminação por conta de sua identidade de gênero e, dentro do universo da pesquisa, 63,9% das pessoas trans declararam ter enfrentado, nos últimos 12 meses, dificuldades momentâneas ou frequentes para atender às suas necessidades básicas de alimentação, moradia ou vestuário. “Cabe reconhecermos que a população trans e travesti vive, em sua maioria, em situação de pobreza e precárias condições de vida, com necessidade de acesso à auxílios, benefícios e programas sociais para sobrevivência”, destaca o conselheiro do CFESS Agnaldo Knevitz.
O Conjunto CFESS-CRESS compreende que o uso do nome social é direito: assistentes sociais devem respeitar o nome social de pessoas usuárias dos serviços e ter seu uso respeitado nos espaços sócio-ocupacionais. É importante destacar que travestis e transexuais, por vezes, também se autoidentificam como pessoas trans ou transgêneros. Existem diversas discussões a respeito das terminologias, que são mais amplas, envolvendo diferentes formas de expressão/identidade de gênero. São essas pessoas que utilizam o nome social para informar à sociedade o nome que as identifica em suas relações pessoais e sociais, adequado à sua expressão/identidade de gênero.
O direito ao nome social, tendo tratamento de gênero conforme se reconhece, deve ser assegurado e precisa ser respeitado por assistentes sociais e por demais profissionais. O desrespeito ao uso do nome social, bem como utilizar propositalmente o pronome (ela/ele, dela/dele) contrariando a identidade e escolha das pessoas, configuram-se como violências ao ferir o direito de livre expressão da singularidade da existência humana. “Lembramos que há pessoas não binárias e demais pessoas trans que também utilizam pronomes neutros (elu/delu). Precisamos reconhecer a diversidade humana e respeitar as particularidades da população trans!”, alerta a conselheira do CFESS Emilly Marques.
Afinal, o que é o nome social?
É importante entender que o nome social é um nome diferente do que consta no registro civil da pessoa. O nome social tem uma relação com a expressão/identidade de gênero e corresponde à forma como cada indivíduo se reconhece, é reconhecido, identificado e denominado em sua comunidade e inserção social. Em geral, a maioria das pessoas trans usa e tem o direito de fazer uso do nome social coerente com sua construção de identidade, recusando a exposição do nome designado ao nascer, que consta em registro civil. É este nome que a pessoa deseja ouvir quando é abordada e é este nome que se chama de “nome social”.
O nome social não é um apelido!
Apelido é uma designação particular para se referir a alguém em vez do nome próprio. Nome social é identidade, refere-se à autodeterminação de gênero. Conforme explicitado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra/2022), “o princípio da autodeterminação de gênero será usado como termo guarda-chuva para falar sobre o direito humano de uma pessoa trans afirmar-se enquanto sujeito, inclusive independente de regulamentação pelo estado. E quando falarmos em autodeclaração, este estará diretamente relacionado a questões como a retificação registral ou uso do nome social, direitos que estão ligados a algum tipo de reconhecimento legal”.
Esse direito vem sendo amplamente violado ou, por vezes, minimizado ou ridicularizado. Assistentes sociais devem se comprometer com o enfrentamento dos preconceitos, da desinformação e se opor a qualquer situação vexatória que, porventura, exponha a população atendida. “As pessoas usuárias dos serviços onde atuam assistentes sociais devem ter o uso do nome social respeitado, assim como assistentes sociais travestis e trans também devem ter o direito de utilizá-lo em seus locais de trabalho e em todos os espaços em que estiverem”, enfatiza a conselheira do CFESS Mirla Cisne.
Quem define o nome social é a pessoa trans ou travesti
Ao se comunicar com uma pessoa trans, é imprescindível utilizar uma linguagem adequada ao gênero com que ela se identifica. Mesmo que uma pessoa solicite utilizar um nome social entendido como feminino, mas se apresente com vestimentas ou atributos que são culturalmente consideradas masculinas ou vice-versa, o nome social que ela solicitar deve ser assegurado.
Ela pode estar passando pelo momento de transição social de gênero ou até mesmo se expressar dessa maneira. Não se deve pressupor as características físicas ou a identidade de gênero de uma pessoa por sua aparência, expressão/papel de gênero. Ao utilizar algum pronome de tratamento, este deve ser adequado à forma como a pessoa quer ser tratada. Sempre pergunte: como você gostaria que te chamasse? Como devo me referir a você? Respeito e diálogo são fundamentais.
Assistentes Sociais têm direito ao uso de seu nome social nos espaços de trabalho e no Conjunto CFESS-CRESS!
O Serviço Social foi uma das primeiras categorias profissionais no Brasil a garantir a utilização do nome social na atuação de profissionais travestis e transexuais e, posteriormente, a assegurar o nome social no Documento de Identidade Profissional (DIP), conforme estabelecido na Resolução CFESS nº 785/2016.
Assistente sociais devem solicitar, por escrito, a utilização do nome social no DIP e o indicará, no momento da sua inscrição no CRESS, ou em outro momento que assim desejar, devendo ser encaminhados os procedimentos para esse atendimento, conforme as normas estabelecidas. Assim, é garantido a profissionais travestis e transexuais utilizar o nome social no DIP, caso deseje, conforme estabelecido na Resolução CFESS nº 785/2016, considerando que toda pessoa tem direito ao tratamento correspondente à sua identidade de gênero. Originalmente, o nome social vinha descrito no anverso do DIP, junto à fotografia, deslocando-se o nome civil para o verso do documento.
Contudo, dando continuidade às discussões e avanços sobre o tema, a Manifestação Jurídica CFESS nº 51/2024-V, fundamentada no Tema 761 (Repercussão Geral) do Supremo Tribunal Federal, entre outros argumentos, entendeu pela oportunidade de atualização da Resolução CFESS nº 1.014/2022, para que o DIP preveja apenas o campo “nome”, sem distinção entre “nome social” e “nome civil”. Essa mudança busca assegurar o respeito integral à expressão/identidade de gênero da pessoa, estando ainda em plena consonância com o Código de Ética Profissional (Resolução CFESS nº 273/1993), com as decisões reiteradas do fórum máximo de deliberação da profissão (art. 9º da Lei no 8.662/1993) e com o histórico de normas expedidas pelo CFESS para afirmar os direitos fundamentais da população LGBTQIA+/trans.
Recentemente, no 51º Encontro Nacional do Conjunto CFESS-CRESS, a categoria aprovou a deliberação de garantir a gratuidade da segunda via do DIP para assistentes sociais trans e travestis, considerando o novo layout, no qual o nome social será garantido no campo denominado apenas “nome”, sem que haja necessidade de constar, também, o nome civil.
Com essa aprovação, assim que a deliberação estiver regulamentada por meio de Resolução do CFESS, profissionais que desejarem utilizar exclusivamente o seu nome social no DIP poderão comparecer ao CRESS e solicitar a atualização no cadastro profissional de forma que o nome civil não seja exibido no documento. Seu número de inscrição será mantido, preservando todas as informações de seu histórico, mas será emitido um novo DIP, para que conste exclusivamente o seu nome social, denominado apenas “nome”. A pessoa responsável no CRESS, de posse da solicitação, poderá realizar a atualização dessas informações. Essas mudanças ainda estão em fase de implementação.
“Um aspecto importante é que não é necessário informar o nome civil em crachá, carimbo ou em assinaturas de documentos, como prontuários e relatórios. Nesse caso, devem constar o nome social e o número de inscrição no CRESS”, observa a conselheira Emilly Marques.
Ela acrescenta que também está disponível o folder “Orientações para o atendimento de pessoas trans e travestis no Conjunto CFESS-CRESS”, material informativo que oferece subsídios para um atendimento nos espaços dos Conselhos de Serviço Social, que reconheça e respeite a expressão e identidade de gênero das pessoas trans.
Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu sobre a questão
No dia 17 de outubro de 2024, o STF retomou a discussão sobre o uso de termos inclusivos na Declaração de Nascido Vivo (DNV). A discussão no STF teve início em 2021, ano em que os termos direcionados para se referir a quem passou pelo trabalho de parto eram centrados somente na figura da mãe. O termo em questão é “parturiente”, que pode ser usado para definir quem está em trabalho de parto ou quem acabou de parir. Foi a partir da decisão feita pelo ministro do STF Gilmar Mendes, que aconteceu a substituição da categoria “mãe” pela categoria “parturiente” nos serviços de saúde. Entretanto, em 2024, esta discussão retornou ao STF, incluindo, assim, os termos “parturiente e/ou mãe” e “responsável e/ou pai”, sendo o último de preenchimento opcional. Assim, entende-se que o uso deste termo nos serviços de saúde torna mais inclusivo o acesso da população trans às políticas de saúde, além de reconhecer as diversas configurações familiares.
Além do Decreto Federal nº 8.727/2016, que regulamenta o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais na administração pública federal, merece destaque também a Instrução Normativa Conjunta MGI/MDHC nº 54/2024, que estabelece diretrizes para o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis, transexuais ou transgêneras nos concursos públicos para provimento de cargos públicos e nos processos seletivos simplificados para a contratação por tempo determinado de que trata a Lei nº 8.745/1993, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Além da decisão do STF, a recente atualização de alguns itens específicos do Cadastro Único, de acordo com o Informe nº 56/2024 do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), pode ser considerada um avanço, no sentido do reconhecimento do uso do nome social e de enfrentamento da transfobia, ao alterar alguns campos do formulário, visando a aperfeiçoar a coleta de dados e promover a inclusão social, como retirada dos termos “mãe” e “pai”, para “filiação 1” e “filiação 2”, retirada do termo “Apelido/Nome Social” para “Nome Social”, inclusão dos campos “Deseja informar gênero?”, “(Nome) é uma pessoa trans ou travesti?” e “Qual é o gênero/identidade de gênero(Nome)?.
Respeitar e utilizar o nome social é um direito humano!
É um direito humano de travestis e transexuais o reconhecimento pelo nome e pronome que se identificam e atribuem à sua expressão/identidade de gênero. Desde junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) também determinou que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passasse a ser crime. A realidade, contudo, ainda é extremamente violenta. De acordo com dados da ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país do mundo que mais mata pessoas trans, (travestis, transexuais, transgêneros), informação reforçada pela Antra. A associação divulgou que o Brasil segue como o país que mais assassinou pessoas trans pelo 15º ano consecutivo, com um aumento de mais de 10%. Além do extermínio físico, há também a morte social, que perpassa frequentemente a invisibilidade e violação de direitos, sendo outra maneira de negar a existência.
“Nesse contexto, ao utilizarmos o nome social, estamos respeitando a identidade e a existência da pessoa, o que é fundamental para vinculação aos serviços e possibilidades de garantias de outros direitos”, completa Agnaldo Knevitz, conselheiro do CFESS.
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