Mudanças na Política Nacional de Saúde Mental: mais uma ameaça do governo ilegítimo

CFESS divulga nota pública sobre a questão
Arte com os dizeres: Proibir e trancar não resolve, em referência à luta antimanicomial(Arte: Rafael Werkema/CFESS)

No dia 7 de dezembro do corrente ano, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) teve acesso à minuta de resolução que está circulando nacionalmente e que altera a direção impressa à Política Nacional de Saúde Mental, instituída pela Lei 10.216/2001.

A política de saúde mental, álcool e outras drogas avançou de forma significativa nos últimos 30 anos, resultado da luta de trabalhadores/as e usuários/as no final dos anos 1970, por meio das denúncias da precariedade das condições de trabalho e de vida em que se encontravam os/as usuários/os desses serviços.

Dados do livro de Daniela Arbex, “O holocausto brasileiro”, demonstram que mais de 60 mil pessoas morreram no hospício de Barbacena (MG), por falta de assistência adequada e descaso do poder público. Além dos maus-tratos, o Estado brasileiro alocava muitos recursos públicos, comprando vagas para internação psiquiátrica em serviços privados, já que os serviços públicos não possuíam leitos suficientes, que atendessem à demanda da população encarcerada nos grandes hospícios e colônias do país.

A partir das denúncias do movimento da Reforma Psiquiátrica, o Brasil reformulou sua política de saúde mental, que culminou na aprovação da Lei 10.216, mas não se esgotou nela. Com a aprovação da legislação, alterou-se a lógica de financiamento e reorganização da assistência. Construíram-se, nos últimos trinta anos, diversos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos: os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as residências terapêuticas, os hospitais-dias, o serviço de trabalho protegido, os centros de convivências e de lazer protegido, dentre outros. Estes avanços possibilitaram questionar as velhas práticas manicomiais, presentes nos serviços psiquiátricos e que resistem em se perpetuar.

Desde 2015, a política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas vem sendo ameaçada. Naquele ano, foi nomeado, como coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, o psiquiatra que anteriormente fora diretor da Clínica Dr. Eiras, situada em Paracambi (RJ), um dos maiores hospícios do Brasil. A luta e a união de trabalhadores/as, usuários/as e familiares fizeram com que o governo recuasse da nomeação. Todavia, essa ameaça ainda não se esgotou, pois continuam as ações no sentido do desmonte da política de saúde mental.

Novamente o governo ilegítimo de Michel Temer, que tem sistematicamente destruído direitos da população brasileira, ameaça alterar a lógica da política de saúde mental, propondo mudanças substantivas na forma de financiamento, bem como expandindo os hospitais psiquiátricos em detrimentos da ampliação dos serviços substitutivos.

Na proposta de mudança, podemos identificar nitidamente alguns pontos. Caso aprovados, impactarão sobremaneira na lógica da política de saúde mental; são eles:

1. A criação da rede de ambulatório de saúde mental – Assistência Multidisciplinar de Média Complexidade em Saúde Mental (Ament)
A proposta do governo é criar um serviço intermediário entre o Caps e atenção básica. Contudo, com a ampliação dos serviços substitutivos, especialmente os Caps, os antigos ambulatórios de saúde mental foram sistematicamente desmontados, para que o atendimento aos transtornos psiquiátricos leves fosse incorporado na atenção básica, principalmente no Programa de Saúde da Família e Nasf, que estão localizados mais próximos dos/as usuários/as. Já os casos de transtornos graves são de responsabilidade dos Caps, que se constituem no coordenador da rede de saúde mental. Cabe ao Caps realizar o matriciamento e orientar as clínicas da família, ofertando suporte técnico para que elas executem o acompanhamento dos/as usuários/as.

Portanto, criar um serviço que seja intermediário entre o Caps e a atenção básica é quebrar a lógica de organização e estruturação dos serviços de saúde mental, pois demostra a intenção do governo de retornar a um modelo assistencial, que proporcionou a segregação e a desassistências de usuários/as.

2. O incentivo ao aumento dos hospitais psiquiátricos mediante alteração da lógica de financiamento da política de saúde mental
Com a instituição da Lei 10.216, o financiamento da saúde mental foi reformulado. Os recursos que antes eram destinados apenas aos hospitais e clínicas psiquiátricas passaram a ser destinados também aos serviços substitutivos.

A partir de 2001, quando um leito psiquiátrico era fechado, ou seja, quando um/a usuário/a de longa permanência recebia alta do hospital, para morar com sua família ou na residência terapêutica, os recursos gastos com a manutenção daquela vaga passavam diretamente para a rubrica dos serviços substitutivos.
Com o avanço da reforma psiquiátrica, foram fechados mais de 13 mil leitos psiquiátricos e parte desses recursos foi destinada para os serviços substitutivos. Contudo, o repasse não ocorreu na sua totalidade para os serviços substitutivos pelos sucessivos governos, o que acarretou a precarização dos serviços.

Com a atual proposta de mudança na política de saúde mental, o governo pretende novamente investir nos serviços e hospitais psiquiátricos, incentivando a internação de curta duração, bem como a criação de novos serviços psiquiátricos, principalmente em relação a demandas relacionadas com o uso prejudicial de álcool e outras drogas.

Embora a proposta contemple a criação de vagas em hospitais gerais, que é uma reinvindicação histórica do movimento da Luta Antimanicomial, nos parece que a real intenção é destinar a responsabilidade de execução aos setores do grande capital por meio da construção de novos conglomerados de hospitais e clínicas psiquiátricas. Vale salientar que esta é uma solicitação antiga da Associação Brasileira de Psiquiatria, que, nos últimos anos, vem sistematicamente questionando a Política Nacional de Saúde Mental.

Outra questão, não menos importante, é a proposta que define que os recursos do fechamento de leitos psiquiátricos não irão mais para a rubrica dos serviços substitutivos. Isso significa dizer que os recursos necessários para a ampliação e manutenção dos serviços serão congelados. Compreendemos que esta proposta fere frontalmente a Lei 10.216 e as portarias ministeriais, que determinam: “O hospital psiquiátrico pode ser acionado para o cuidado das pessoas com transtorno mental nas regiões de saúde enquanto o processo de implantação e expansão da Rede de Atenção Psicossocial ainda não se apresenta suficiente, devendo estas regiões de saúde priorizar a expansão e qualificação dos pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial para dar continuidade ao processo de substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos” (Portaria do Ministério da Saúde n° 3088, de 23 de dezembro de 2011. Artigo 11, 2°§).

Propor ampliar os serviços hospitalares psiquiátricos é retornar a um passado sombrio, a um passado que lutamos para superar. Não devemos e não queremos produzir novamente desassistência e morte. Pelo contrário, queremos ampliar a cidadania e a autonomia dos usuários/as da política de saúde mental.

3. A inclusão das comunidades terapêuticas como serviços de saúde
Historicamente, o movimento da Luta Antimanicomial e da Reforma Sanitária lutaram para que as comunidades terapêuticas não entrassem no rol de serviços de saúde mental, posição que se explicitou nas duas últimas Conferências de Saúde Mental. Foi exatamente por isso que os grupos ligados às comunidades terapêuticas buscaram sua regulamentação no Ministério da Justiça, por meio do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), que se propôs a regulamentar e subsidiar essas instituições, apesar do questionamento de várias organizações e movimentos sociais quanto à eficácia das comunidades terapêuticas, tendo em vista que o sistema de saúde mental tem uma perspectiva de trabalho com os usuários/as que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, que não se coaduna com aquela preconizada pelas comunidades terapêuticas.

O Ministério da Saúde, ao definir a política de atenção integral às pessoas que consomem drogas ou delas são dependentes, reafirma que o local apropriado para atendimento é a rede proposta pelo SUS, que se baseia no atendimento realizado próximo ao ambiente de moradia dos/as usuários/as, evitando, dessa forma, que as pessoas sejam isoladas e segregadas.

Vale salientar que a resolução que regulamenta as comunidades terapêuticas, apesar de aprovada pelo Conad, encontra-se suspensa pela justiça, que compreende que a regulamentação fere princípios básicos da política e da Lei 10.216.

A inclusão das comunidades terapêuticas no rol de serviços de saúde mental altera a lógica da Reforma Psiquiátrica, incluindo serviços que não possibilitam a construção da autonomia dos/as usuários?/as.

Diante desses retrocessos, precisamos ficar atentos/as e fortes na defesa de uma política pública que contribua para ampliação dos direitos dos/as usuários/as, da sua autonomia e liberdade, princípios inscritos no projeto ético-político do Serviço Social brasileiro.

Nós, assistentes sociais, temos muito a contribuir com o avanço da Reforma Psiquiátrica brasileira. Por isso, não é hora de retroceder. É tempo de lutar, de forma organizada, por uma sociedade justa e sem manicômios! O CFESS compõe essa trincheira, junto às demais entidades e movimentos da área. Conclamamos todos/as os/as assistentes sociais e a população a se somar na defesa da Política Nacional de Saúde Mental.

Brasília, 12 de dezembro de 2017.
Conselho Federal de Serviço Social – CFESS

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